terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

“Após 'Dia do Orgulho Hétero', vereador de SP quer banheiro gay

No ano passado, o vereador Carlos Apolinário (DEM) quase conseguiu que virasse lei o seu projeto de criar em São Paulo o Dia do Orgulho Heterossexual. Agora, ele teve outra ideia: criar um banheiro ‘unissex’ em locais públicos para gays, lésbicas, travestis e quem mais quiser.O terceiro banheiro passaria a ser uma exigência da prefeitura para autorizar a construção ou reforma de shoppings, supermercados, restaurantes, cinemas e casas noturnas em geral.A ideia, diz o vereador, surgiu ao saber da polêmica na qual o cartunista Laerte Coutinho, 60, que é bissexual e se veste de mulher há três anos, envolveu-se ao tentar usar o banheiro feminino de uma pizzaria e lanchonete.”

Uma das razões pelas quais é fácil termos um banheiro para homens e outro para mulheres é que conseguimos identificar o sexo do usuário. Seja visualmente, seja pela carteira de identidade. E já vimos aqui como isso não faz muito sentido e que, por isso mesmo, o Estado deixa para cada estabelecimento organizar o uso de seus banheiros.

Hoje vamos falar desse assunto sobre um outro ângulo: o do controle das diferenças.

Uma das razões pela qual a escravidão deu certo por tanto tempo é porque era possível identificar negros e brancos visualmente (ou por documentos). Na África do Sul era fácil saber quem poderia usar esse ou aquele ônibus: bastava olhar a cor da pele. Em ambos os casos, o processo de identificação é fácil e o custo é baixo.

Mas e quando a diferença não é tão clara? Quando não está 'na cara'? Como saber se Fulano é palestino ou israelense, se Cicrano é judeu ou alemão, ou se Beltrano é gay ou hetero?

Há apenas duas formas: ou fazemos com que essa diferença venha se torne clara para que o controle se torne fácil e barato, ou deixamos a critério da própria pessoa se definir.

Vamos começar por quando deixamos a critério da pessoa se definir. É, por exemplo, o que o IBGE faz durante o censo, e o que os institutos de pesquisa fazem quando perguntam em quem você irá votar. Você diz qual é sua raça ou seu candidato. A opinião do pesquisador a seu respeito não importa.

E é aí que está o problema desse método: como é que você quem se define, você pode mentir. Você pode estar usando uma camisa do PT e sua casa estar cheia de material de campanha do partido, mas se você disser ao pesquisador que você votará no PSDB, é isso que ele colocará no questionário.

Imagine um banco no qual o vigilante responsável por organizar as filas seja cego. Há duas filas: uma para idosos, que anda rápido e tem preferência, e outra para as outras pessoas, que é longa e demorada. O vigilante cego te pergunta: ‘você é velho ou novo?’ Você, tem 18 anos mas se declara idoso para usar a fila rápida. Ou você tem 90 anos mas declara ter 18 para ficar na fila jovem xavecando a menina de minissaia.

Pior: O idoso poderia e queria usar a fila mais rápida, mas sabe que todo mundo da fila mais lenta o irá olhar de forma odiosa. Alguns ocupantes da fila mais lenta são até conhecidos por baterem nos idosos depois de saírem do banco. Ninguém quer sofrer preconceito. Como o sistema (o vigilante cego) não funciona, nosso idoso prefere se tornar um ‘idoso enrustido’ e ficar na fila mais longa.

O problema não é a fila (ou o número de banheiros): sem um sistema de vigilância que funcione, a divisão por ‘autodeclaração’ só funciona se as pessoas não têm incentivos positivos ou negativos para trapacearem. Se tiverem, os não-heteros usarão os banheiros heteros (por exemplo, porque haverá fila menor), ou os heteros usarão o banheiro-limbo (por exemplo, porque, como ninguém o usa por medo de ser discriminado, é o único vazio. Ou somente o machão terá ‘coragem’ de usa-lo, criando um efeito inverso ao desejado).

Pior: e se meu problema com banheiro não é sobre a opção/orientação sexual do usuário, mas sobre a religião do usuário. Teríamos que construir mais banheiros: para heteros evangélicos, homossexuais evangélicos, heteros católicos etc.E voltamos ao problema que já vimos semana passada.

A outra forma seria usar um sistema em que o Estado ou seu agente diz quem é hetero e quem não é e, por consequência, quem pode usar qual banheiro. Os nazistas, por exemplo, obrigavam os judeus a usarem uma tarja com a estrela de Davi em seus braços. Isso trazia a diferença para a superfície, facilitando e barateando o controle. E quem tem problema de visão tem esse problema escancarado em sua carteira de motorista: não pode dirigir sem óculos ou lente corretiva.

Mas aí a discussão fica muito mais complicada. Começar a obrigar todos os não-heteros a andarem com uma faixa arco-íris no braço não parece muito justo e os submete a uma avalanche de potenciais preconceitos. O mesmo ocorreria se obrigássemos todos os evangélicos a usarem adesivos em seus carros ou resolvêssemos raspar a cabeça de todas as pessoas que não gostam de matemática.

Religião e sexualidade, assim como gosto por matemática, são questões de foro íntimo. Algumas poucas pessoas vão declarar abertamente que não gostam de matemática ou de homossexuais. Para a maior parte das pessoas, isso não importa! Impor um sistema que gera preconceito apenas para satisfazer uma minoria é arriscado, além de ser jogar dinheiro fora.

Pior: a partir do momento em que o Estado passa a fiscalizar diferenças (sejam de foro íntimo, sejam explícitas), todos sabemos onde isso começa, mas nunca sabemos onde termina. Na Alemanha, terminou em Auschwitz. Na África do Sul, em apartheid.

Além disso, em termos de sexualidade, a questão não é tão objetiva. Algumas pessoas são bisexuais, outras são abertamente homossexuais, outras são menos abertas, outras são heteros mas parecem que não são, e algumas se dizem heteros e não são. Teríamos um enorme potencial de injustiças. Tente imaginar o fiscal do banheiro (porque teria que haver um em cada bar) decidindo se você pode ou não usar o banheiro hetero ou o banheiro-limbo.

Um princípio básico de direito é que o Estado só deve intervir quando sua intervenção resolver o problema, o problema precisa de ser resolvido, e não há uma outra solução mais simples que não demanda a intervenção estatal. É por isso que não temos leis dizendo se seu filho pode ou não comer doces: a intervenção do Estado não é a melhor maneira de resolver o problema.

Acima vimos que em alguns casos – como o dos óculos na carteira de motorista – a discriminação funciona. Ela funciona quando o seu custo é menor que seu benefício não só para a pessoa, mas para a sociedade. Obrigar alguém com problema de vista a usar óculos e dizer isso em sua carteira não só serve para proteger a vida daquele motorista, mas a vida de todo mundo. A análise de custo (discriminação) e benefício (proteger a vida do discriminado e do resto da sociedade) sugere que tal política pública faz sentido.

A construção de um terceiro banheiro em cada ambiente público custa caro e só se justifica se gerar os benefícios desejados e esses benefícios forem maiores que os custos. E nessa análise de custo devemos levar em conta o custo de fiscalização e controle. Se houver uma lei que proíba o homossexual de usar o banheiro hetero, ainda que não haja um fiscal do banheiro, haverá processos a respeito do assunto. E esses processos geram um enorme custo financeiro para a sociedade.

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