No ano passado, o vereador Carlos Apolinário (DEM) quase conseguiu que virasse lei o seu projeto de criar
Uma das razões pelas quais é fácil termos um banheiro para homens e outro para mulheres é que conseguimos identificar o sexo do usuário. Seja visualmente, seja pela carteira de identidade. E já vimos aqui como isso não faz muito sentido e que, por isso mesmo, o Estado deixa para cada estabelecimento organizar o uso de seus banheiros.
Hoje vamos falar desse assunto sobre um outro ângulo: o do controle das diferenças.
Uma das razões pela qual a escravidão deu certo por tanto tempo é porque era possível identificar negros e brancos visualmente (ou por documentos). Na África do Sul era fácil saber quem poderia usar esse ou aquele ônibus: bastava olhar a cor da pele. Em ambos os casos, o processo de identificação é fácil e o custo é baixo.
Mas e quando a diferença não é tão clara? Quando não está 'na cara'? Como saber se Fulano é palestino ou israelense, se Cicrano é judeu ou alemão, ou se Beltrano é gay ou hetero?
Há apenas duas formas: ou fazemos com que essa diferença venha se torne clara para que o controle se torne fácil e barato, ou deixamos a critério da própria pessoa se definir.
Vamos começar por quando deixamos a critério da pessoa se definir. É, por exemplo, o que o IBGE faz durante o censo, e o que os institutos de pesquisa fazem quando perguntam em quem você irá votar. Você diz qual é sua raça ou seu candidato. A opinião do pesquisador a seu respeito não importa.
E é aí que está o problema desse método: como é que você quem se define, você pode mentir. Você pode estar usando uma camisa do PT e sua casa estar cheia de material de campanha do partido, mas se você disser ao pesquisador que você votará no PSDB, é isso que ele colocará no questionário.
Imagine um banco no qual o vigilante responsável por organizar as filas seja cego. Há duas filas: uma para idosos, que anda rápido e tem preferência, e outra para as outras pessoas, que é longa e demorada. O vigilante cego te pergunta: ‘você é velho ou novo?’ Você, tem 18 anos mas se declara idoso para usar a fila rápida. Ou você tem 90 anos mas declara ter 18 para ficar na fila jovem xavecando a menina de minissaia.
Pior: O idoso poderia e queria usar a fila mais rápida, mas sabe que todo mundo da fila mais lenta o irá olhar de forma odiosa. Alguns ocupantes da fila mais lenta são até conhecidos por baterem nos idosos depois de saírem do banco. Ninguém quer sofrer preconceito. Como o sistema (o vigilante cego) não funciona, nosso idoso prefere se tornar um ‘idoso enrustido’ e ficar na fila mais longa.
O problema não é a fila (ou o número de banheiros): sem um sistema de vigilância que funcione, a divisão por ‘autodeclaração’ só funciona se as pessoas não têm incentivos positivos ou negativos para trapacearem. Se tiverem, os não-heteros usarão os banheiros heteros (por exemplo, porque haverá fila menor), ou os heteros usarão o banheiro-limbo (por exemplo, porque, como ninguém o usa por medo de ser discriminado, é o único vazio. Ou somente o machão terá ‘coragem’ de usa-lo, criando um efeito inverso ao desejado).
Pior: e se meu problema com banheiro não é sobre a opção/orientação sexual do usuário, mas sobre a religião do usuário. Teríamos que construir mais banheiros: para heteros evangélicos, homossexuais evangélicos, heteros católicos etc.E voltamos ao problema que já vimos semana passada.
A outra forma seria usar um sistema em que o Estado ou seu agente diz quem é hetero e quem não é e, por consequência, quem pode usar qual banheiro. Os nazistas, por exemplo, obrigavam os judeus a usarem uma tarja com a estrela de Davi em seus braços. Isso trazia a diferença para a superfície, facilitando e barateando o controle. E quem tem problema de visão tem esse problema escancarado em sua carteira de motorista: não pode dirigir sem óculos ou lente corretiva.
Mas aí a discussão fica muito mais complicada. Começar a obrigar todos os não-heteros a andarem com uma faixa arco-íris no braço não parece muito justo e os submete a uma avalanche de potenciais preconceitos. O mesmo ocorreria se obrigássemos todos os evangélicos a usarem adesivos em seus carros ou resolvêssemos raspar a cabeça de todas as pessoas que não gostam de matemática.
Religião e sexualidade, assim como gosto por matemática, são questões de foro íntimo. Algumas poucas pessoas vão declarar abertamente que não gostam de matemática ou de homossexuais. Para a maior parte das pessoas, isso não importa! Impor um sistema que gera preconceito apenas para satisfazer uma minoria é arriscado, além de ser jogar dinheiro fora.
Pior: a partir do momento em que o Estado passa a fiscalizar diferenças (sejam de foro íntimo, sejam explícitas), todos sabemos onde isso começa, mas nunca sabemos onde termina. Na Alemanha, terminou
Além disso, em termos de sexualidade, a questão não é tão objetiva. Algumas pessoas são bisexuais, outras são abertamente homossexuais, outras são menos abertas, outras são heteros mas parecem que não são, e algumas se dizem heteros e não são. Teríamos um enorme potencial de injustiças. Tente imaginar o fiscal do banheiro (porque teria que haver um em cada bar) decidindo se você pode ou não usar o banheiro hetero ou o banheiro-limbo.
Um princípio básico de direito é que o Estado só deve intervir quando sua intervenção resolver o problema, o problema precisa de ser resolvido, e não há uma outra solução mais simples que não demanda a intervenção estatal. É por isso que não temos leis dizendo se seu filho pode ou não comer doces: a intervenção do Estado não é a melhor maneira de resolver o problema.
Acima vimos que em alguns casos – como o dos óculos na carteira de motorista – a discriminação funciona. Ela funciona quando o seu custo é menor que seu benefício não só para a pessoa, mas para a sociedade. Obrigar alguém com problema de vista a usar óculos e dizer isso em sua carteira não só serve para proteger a vida daquele motorista, mas a vida de todo mundo. A análise de custo (discriminação) e benefício (proteger a vida do discriminado e do resto da sociedade) sugere que tal política pública faz sentido.
A construção de um terceiro banheiro em cada ambiente público custa caro e só se justifica se gerar os benefícios desejados e esses benefícios forem maiores que os custos. E nessa análise de custo devemos levar em conta o custo de fiscalização e controle. Se houver uma lei que proíba o homossexual de usar o banheiro hetero, ainda que não haja um fiscal do banheiro, haverá processos a respeito do assunto. E esses processos geram um enorme custo financeiro para a sociedade.